De Alberto Caieiro, "em Pessoa":

"Pensar incomoda como andar na chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais"

14/10/2013

MANHÃ

Escrito na primeira metade da década de 1990. Arriscaria 1994. Mas, sei lá... Dei uma "revisitada"...

MANHÃ
Acordei, olhei no espelho e não gostei do que vi. Era o mau humor, claro, como de costume nas manhãs. Mas fiquei nesta ocasião irritadíssimo com as formas irregulares, o cabelo despenteado, o resultado horrível.
Como sempre: escovei  os dentes, lavei o rosto, olhei a incipiente barba - não, não fiz, não raspei, não cortei, não compensava, enfim -, fui para o quarto e me vesti para sair. Enquanto preparava o café, vi meu reflexo  na tampa do fogão e foi a gota d´água: observei uma faca sobre a pia; tomei- nas mãos... Sorri... E corri... para o banheiro!
Talhei o rosto com toda delicadeza: cortei fora boa parte do nariz, furei um dos olhos, decepei completamente uma das orelhas. Ainda insatisfeito, cavei um buraco no queixo, tirei uma espessa fatia do lábio inferior, tirei a ponta da língua. Ah, estava melhor!! Mas ainda não me sentia à perfeição... Peguei o barbeador elétrico e lentamente o corri pela cabeça: e cabelo desabava no chão. Abri uma trilha bem no centro e pelei toda a parte de trás. Busquei uma tesoura e comecei a cortar mechas dos lados. Não esqueci, claro, de tirar as sobrancelhas!
Olhei no espelho e sorri: bom! Parecia bem melhor. Já não era mais aquele rosto feio, desanimado e sem graça de todos os dias, aquela carinha que dava motivo para brincadeirinhas e piadinhas. Ou... Comum? Não sei. Mas, agora, era grotesco. Era medonho. Quem me encarasse, arriscaria-se ao medo. Melhor assim. Insociável, sim!
Fui ao trabalho, porém voltei mais cedo para casa. Estranhamente pensaram que eu sofrera algum acidente ou qualquer coisa parecida. "Deram-me" o dia. À noite, na faculdade, fui gentilmente retirado da sala. Depois, brutamente expulso do prédio.
Insisti em trabalhar no dia seguinte, mais uma vez me mandaram para casa. Passaram-se alguns dias até que, por fim, sem maiores explicações, fui demitido. Absurdamente, não permitiram mais que eu entrasse no campus da universidade. Arbitrariedade...
Dias passaram: comecei a passar todo o tempo em casa. Lia e relia os poucos livros que tinha, reproduzia incessantemente os mesmos discos, dormia em qualquer horário, pouco comia. Sem qualquer preocupação com qualquer coisa, fui deixando a casa à vontade; inevitavelmente, a sujeira foi tomando conta. Realmente não varria o chão, não lavava o que usava, o banheiro foi se emporcalhando, o quarto embolorando, sem iluminação ou ventilação. Deixei para lá o banho e nem mudava mais de roupa.
Semanas passaram: o  ambiente ao redor da casa foi se tornando pouco salubre. Há dias começara atrair cachorros, gatos, ratos, aranhas, baratas e quetais. Para mim, indiferença. Para a vizinhança...
Logo, chamaram um órgão qualquer zelador da saúde pública. Fui atormentado dias seguidos. Retirado do meu doce torpor e da minha reconfortante indiferença. Dias e dias seguidos, algum funcionariozinho da prefeitura batia na minha porta. 
Cansei.
Sai de casa. Andei feito vagabundo andarilho pelas ruas por alguns dias. Saí da cidade. Peguei a estrada. Finalmente, encontrei um lugar distante, deserto e calmo.
Fiz qualquer tapera para passar as noites. Na verdade, morava ali. Dormia quase todo o tempo, levantava-me apenas para raramente procurar comida, e para beber água num fio corrente das proximidades. Felizmente, já não lembrava como soava minha voz e, principalmente, de como era meu rosto (ou meu novo rosto).
Meses passaram: eu por ali, até  que  caminhando para um pouco mais distante em busca do quê de comer vi  meu  reflexo num límpido córrego. Observei um rosto normal, até... Bonito? Ah, sim... Comum... Uma cabeleira abundante até bela, apesar de suja.
Sorri. Vi todos os dentes (ah, esquecera dos dentes!!!!)
Banhei-me ali mesmo. Lavei  como pude os trapos que me cobriam, esperei que eles secassem. Uma noite a mais, depois rumei de volta para casa. Fiz uma consistente faxina. Expulsei os gatos, pus ratos para correr, assustei baratas, despachei quase todos os cachorros, cortei as ervas do minúsculo jardim, reguei as quase inexistentes plantas. Tomei outro banho, fiz a barba, lavei bem o cabelo depois, toscamente, o acertei, mesmo mantendo-o longo.
Dia seguinte, fui ao meu antigo emprego, revi o pessoal, o gerente me chamou, elogiou minha competência e pediu para que eu voltasse. 
À noite, fui para a universidade (deixaram-me entrar...), falei com os colegas, com alguns professores, prometeram auxílio para que recuperasse o que foi perdido.
Reassumi minha antiga vida. Trabalho intenso, faculdade toda noite. Eu era o mesmo...
Dias passaram, semanas passaram, meses passaram até que, numa manhã...
... Acordei, olhei no espelho e não gostei do que vi - meu velho  rosto comum no espelho. Escovei os dentes, lavei o rosto, fui para o quarto me trocar. Enquanto esquentava o leite, vi meu reflexo na tampa do fogão. Senti nojo. A primeira coisa que vi foi o liquidificador, sobre a pia. Enfiei uma mão dentro e com a outra liguei. Depois de tudo certo, peguei a faca, decepei as duas orelhas, cortei toda a língua, enchi o liquidificador, e liguei de novo. De novo...
Misturei com o leite, tomei, passei mal e voltei a dormir. 
Acordei na manhã seguinte.
Olhei no espelho do banheiro e nada tinha acontecido. 
Fui trabalhar, não perdi o emprego. 
Fui à universidade, nada demais aconteceu. 
Depois de um dia exaustivo, voltei para casa, dormi até acordar na manhã seguinte. 
Vi meu rosto no espelho e fui trabalhar...

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