De Alberto Caieiro, "em Pessoa":

"Pensar incomoda como andar na chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais"

19/10/2013

VINÍCIUS, MINHA ÓBVIA HOMENAGEM...

Gosto demais do poeta Vinícius; e, a despeito de tantos outros que eu gosto muito mais pela temática, dele e de Drummond eu sabia dezenas "de cor", para recitar, mesmo. Hoje, a memória falha muito. Essa "pequenininha", aí, eu sabia inteira.
E, por oportuno, sempre gostei mais do poeta-de poema-poesia do que do poeta-musicista-letrista-de poesia. Mesmo que ele seja uma das poucas salvaguardas da ridícula bossa nova.

Entre "Filhos, filhos... Melhor não tê-los" e a de baixo, escolhi: a homenagem não podia ser mais óbvia...





O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO



Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas que lhe
Brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão.
Não sabia, por exemplo,
Que a casa de um homem é um templo,
Um templo sem religião.
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção compreender
Por que um tijolo
Valia mais que um pão?
Tijolos ele empilhava, com pá,
Cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia,
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão que sofreria se
Não fosse, eventualmente,
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa e
A coisa faz o operário.
De forma que, certo dia,
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
¾ garrafa, prato, facão ¾
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela, banco,
Enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela,
Casa, cidade, nação.
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão


Ó homens de pensamento,
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário soube
Naquele momento!
Naquela casa vazia, que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que  sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E, olhando bem para ela,
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela!

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
que, tal sua construção,
Cresceu ali também o operário
Cresceu alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão.
Pois, além do que sabia
¾ exercer a profissão ¾
O operário adquiriu
uma nova dimensão: a dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não
E aprendeu a notar  coisas
As quais não dava atenção:
Notou  que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja
Era o uísque do patrão
Que seu macacão
Era o terno do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram o carro do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão.

E o operário disse: não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas de delação
Começaram a dizer coisas nos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
¾ Convençam-no do contrário
Disse ele sobre o operário
E, ao dizer, sorria

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas, quando foi perguntado
O operário disse não.


Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras seguiram,
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num  momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez esta declaração:
¾ Dar-te-ei todo esse poder
    E a sua satisfação
    Porque a mim me foi entregue
    E dou-o a quem quiser.
    Dou-te tempo de lazer
    Dou-te tempo de mulher
    Portanto, tudo o que vês
    Será teu se me adorares
    E, ainda mais, se abandonares
    O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro via coisas, objetos, produtos, manufaturas
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse não.

¾  Loucura! ¾ gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
¾ Mentira! ¾ disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
como o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.

Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que o fizera
Em operário construído
O operário em construção.

Nenhum comentário: