De Alberto Caieiro, "em Pessoa":

"Pensar incomoda como andar na chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais"

29/02/2012

Para quem perdeu a capacidade de deixar pra lá...

A verdade e o horror - o horror e a verdade.

Meados do ano  passado, iniciei a leitura do livro “Um escritor na guerra: Vasily Grossman com o Exército Vermelho (1941-1945)", uma coletânea de artigos e cartas pessoais do correspondente do jornal Krasnaya Zvezda (o “Estrela Vermelha”, até hoje existente, então jornal do Exército Vermelho), entremeadas de rápidas descrições e pontuações pelos organizadores das circunstâncias nas quais o autor, que viveu praticamente todo o período de envolvimento da URSS na Segunda Guerra, escrevia seus textos. Ao final da leitura, a obra apontou-me três focos de análise e uma amarga recordação – que toquei adiante.
Das análises, a primeira é sobre a atuação do Exército Vermelho. Ficou reforçada a tese do seu evidente despreparo para enfrentar a invasão alemã e impedir o avanço nazista até os portais do poder stalinista. Mas posteriormente, entretanto, e também sustentando teses preexistentes, a obra evidencia o papel climático na recuperação dos soviéticos na guerra, além da incontestável superioridade numérica que de certa forma superou o abissal predomínio tecnológico alemão, a importância do enorme esforço para a produção de guerra do gigantesco poder estatal soviético (auxiliada pelos leasings estadunidenses),  e da bravura de muitos soldados e oficiais das diferentes nacionalidades soviéticas, na maioria dos casos amplificada pela devoção ao regime e ao seu líder – em boa medida, conseqüência do pérfido culto à personalidade instaurado pelo regime  -, fatores que levaram o Exército Vermelho a avançar milhares de quilômetros, dos limites de Moscou até o centro de Berlim.
A outra análise é a da participação do povo soviético na resistência, na luta. Curiosamente, parece que quanto mais distante geograficamente do poder, maior parecia a proporção da população descontente com o stalinismo, contra a coletivização imposta, quanto às dificuldades de abastecimento, quanto ao autoritarismo intolerante contra os considerados inimigos do regime. Assim, em diferentes trechos, o autor constata a colaboração da população com os alemães – enorme na Ucrânia, presente em Belarus, percebidas em suas tímidas e quase envergonhadas constatações, demonstrou que na maior parte do tempo Grossman também manifestou grande fidelidade e confiança nos rumos do “socialismo real” stalinista e no estranho patriotismo “internacionalizado”, produtor de contraditórias  reações e de conclusões dicotômicas dos partidários e simpatizantes do regime.
Por fim, vem a análise dos crimes nazistas contra os judeus. Grossman, assim como tantos outros dos seus espalhados por toda a Europa, pouco tinham com o judaísmo senão a origem; entretanto, ao conhecer a perseguição desumana e sistemática contra seu povo, aos poucos levou-o, assim como outros tantos judeus antes indiferentes, a sentir em si um agudo apego à origem, à defesa do seu povo. Conforme avançava o Exército Vermelho, Grossman ia notando maior a proporção do extermínio; ao mesmo tempo, enquanto vivia e relatava aquilo, parecia incapaz de perceber que o regime stalinista jamais reconheceria os judeus como vítimas maiores e à parte, minimizando a situação deste povo como se todos fossem meras vítimas individuais da guerra - se não uma manifestação anti-semita, certamente uma tentativa de ignorar a questão para vitimizar por igual os “internacionais” soviéticos.
Então Grossman chega à Treblinka, e com o que pouco viu e muito ouviu dos raríssimos sobreviventes, escreveu o relato “O inferno chamado Treblinka”, lido no Tribunal de Nuremberg. Acabou  me fazendo voltar para lá...
Li pela primeira vez o livro “Treblinka” (Jean-François Steiner), certamente há mais de vinte anos, entre meus 15 e 17 de idade. A impressão que a obra me causou foi funda, inesquecível, mas neste caso por dolorosa e amarga. Assim como ocorreu com algumas outras obras em minha vida, da literatura ao cinema, enterrei "Treblinka" num recanto isolado da minha memória, sabendo que jamais esqueceria que o li, mas, entretanto, buscando uma alternativa para não ter que suportar repetir a experiência daquela dor. Quando Grossman, em um longo artigo, descreve o pouco que viu e o muito que ouviu a respeito do campo de extermínio de Treblinka, acabei tomando a obra para relê-la, na esperança que uma maior maturidade pudesse manter sob controle aquelas cicatrizes invisíveis da primeira leitura.
Eu estava enganado.
Tentei me preparar obtendo algumas informações sobre  obra e o autor antes de iniciar a releitura. Encontrei um sem-número de críticas à obra, com o tratamento mais suave de chamá-la de "romance". Curiosamente, entretanto, 9 em cada 10 fontes de tais críticas são, no mínimo, excessivamente tolerantes com o  que elas mesmo chamam de "nacional-socialismo" (e não NAZISMO, estranhamente)... Esperado o fato, uma vez que tantos ainda negam o Holocausto judeu no passo de suas pérfidas e cruéis convicções ideológicas.
Evidente que o livro deve ter um pouco de fantasia ou imaginação; Steiner, assim como Grossman, colheu informações sobre o funcionamento do campo com poucos dos já raríssimos sobreviventes do campo, e anos depois. Embora não seja razão para elogios ou admiração, é de se considerar inevitável que as lacunas de determinados fatos possam ter sido preenchidos por uma inspirada verve ficcional do autor. Mas, por maior que tenha sido a proporção desta tentação no autor, em nada diminui  a náusea e o pasmo horrorizado do que o livro busca retratar...
Então, tomei em mãos a obra, na minha edição rota e remendada com mais de 30 anos, comprada por minha mãe.
Mesmo sabendo que releria fatos terríveis em termos gerais, percebi que no passo do meu avanço na leitura, minha memória ia recuperando parcialmente e por antecipação os fatos, gerando angústia, raiva, dor e, principalmente, vergonha; depois, relendo os fatos relembrados, gravaram-se  mais fundas as sensações negativas da(s) tamanha(s) monstruosidade(s) que o livro registra.
Tenho certeza de que muitos dos poucos que passarão pelo que agora escrevo já leram, viram e ouviram histórias e registros a respeito de diferentes campos de concentração, trabalho e extermínio nazistas. Especialmente o cinema, com seu apelo imagético, provavelmente levou às lágrimas ou à beira delas tantos de nós. Mas o impacto de “Treblinka” é terrivelmente pior... Porque o campo de Treblinka foi, sem dúvidas, o retrato maior da crueldade nazista. Era unicamente um campo de extermínio, ao contrário de Auschwitz, que era um campo de trabalho e extermínio. Lá registrou-se o espírito da eficiência perfeccionista que pontuou, nos mais mínimos detalhes, o propósito do extermínio anti-semita de Hitler.
O campo durou pouco mais de um ano, período no qual poucas dezenas de Schutzstaffels, com pouco mais de uma centena de guardas ucranianos, procuraram aperfeiçoar constantemente, primeiro, a máquina de extermínio e, depois - numa crueldade talvez ainda maior - eficientes maneiras de apagar da História a existência dos exterminados.  
Em seu pleno funcionamento, a máquina era capaz de matar milhares por hora –  em geral, só matava pela manhã. Assim, neste curto intervalo de tempo, acredita-se que tenham sido exterminados no campo entre 750 mil e 900 mil judeus, a espantosa e esmagadora maior parte nas câmaras de gás e muitos com espancamentos e tiros na nuca. Além disso, outros tantos se suicidaram, incapazes de suportar não somente a tortura e as péssimas condições de vida nas quais eram mantidos os prisioneiros judeus que faziam o campo funcionar, mas principalmente por saber para quê trabalhavam.
Foram selecionados, primeiro, em táticas cruéis que escolhiam os mais aptos para um trabalho que nem a pior das escravidões ao longo do tempo jamais conseguiu reproduzir. Depois, conforme o campo foi se aperfeiçoando nas estratégia de extermínio, conforme a habilidade dos prisioneiros em determinados ofícios. Por conta disso, em Treblinka, incontáveis exemplos de irmãos que participaram do assassinato de irmãos; pais da morte filhos, e filhos nas dos seus pais. De maneira consciente, mas de mãos, almas e vontades atadas, cerradas, torturadas pelo simples e isento de críticas apego à vida. E essa era a sensação de muitos:  que diferença poderia fazer? Morrer instantaneamente ou esperar por mais alguns dias, sensação que em muitos casos dissipou-se nos indivíduos, conforme passava os dias ou conforme outras vidas através dos olhos e das mãos deles se esvaíam.
Dos guetos, vinham famílias inteiras espremidas em vagões, em geral de 150 a 200 pessoas, carregando suas roupas, dinheiros e pertences mais valiosos, todos crentes de que estavam sendo enviadas para campos de trabalho na Ucrânia. Chegavam numa pequena e simpática estação de trem onde eram recebidos por uma banda de música composta por judeus – prisioneiros. A pequena vila construída em volta das câmaras de gás de Treblinka servia não apenas para garantir o funcionamento do campo, mas também para convencer ou manter, até o último instante, a esperança dos recém chegados. Após o desembarque e a separação da bagagem maior, casais eram separados; depois, crianças, independente da idade, eram subitamente arrancadas das mães. Todos desfaziam-se do dinheiro e outros objetos de valor, depois as roupas do corpo e por fim dos cabelos, escrupulosamente raspados; daí, iam  diretas para a morte.  O que poderia esperar um pai ou uma mãe, às portas da câmara de gás, ao enfrentar tal experiência? Seria a morte suficiente?
Não para os nazistas, que ainda extraíam da boca dos cadáveres dentes de ouro, obturações e quetais. 
Em todo o percurso, do trem para a morte, os prisioneiros judeus é quem selecionavam as roupas, cortavam os cabelos, recolhiam os objetos de valor, extraíam os dentes, enterravam  os corpos – até que a cremação dos cadáveres começasse, com a finalidade de impossibilitar o registro do terror. Aí, então, bastaria matar até o último judeu!
Nomes, exemplos, histórias à parte nem cabem aqui. Estão na obra. É na leitura de algo assim que vem a dúvida, um parcial desejo da ignorância, a abençoada ignorância idiotizada que traz a felicidade. A ignorância com a qual muitos de nós não conseguimos nunca mais nos envolver. Até porque, mesmo ao peso de toda amargura e dor, da profunda vergonha de ser humano que a leitura de “Treblinka” excita, ainda resta na balança a funda necessidade de termos a verdade. Nem que sirva somente para não corrermos o risco de nos calarmos ao notar algo mesmo que semelhante à intolerância que provocou o Holocausto aconteça ou se repita.

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