De Alberto Caieiro, "em Pessoa":

"Pensar incomoda como andar na chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais"

13/03/2012

De amor e de sombras...

Leitura nova de obra nem tão nova (publicada 1984).

Isabel Allende é filha de um primo-irmão de Salvador Allende (portanto, ela e "o" Allende eram primos). Peruana de nascimento, em virtude da atividade do pai (corpo diplomático), mas chilena de coração. 
Uma ditadura, um regime autoritário, é ruim para praticamente todos - exceto para os "amigos do rei" -, mas imagino o quanto deve ser mais cruel para alguém que, tendo por volta de 30 anos de idade, como ela, vê seu país amado mergulhar na espessa treva da ditadura militar, ainda mais com uma visão consciente de mundo - a despeito de concordarmos ou não qual seja essa visão. Essa era a situação de Isabel no seu Chile, quando viu o primo resistir à sanha militarista que o levou ao suicídio, ao claramente fracassar a defesa da legitimidade e legalidade do seu governo.
Costuma-se dizer que a ditadura chilena foi a mais cruel das ditaduras da América do Sul; incomoda-me a questão, por dois motivos: primeiro, porque o regime chileno não se preocupou em esconder a ditadura sob uma ilusão de legalidade, então matou sem dar satisfação e elevando o número oficial de vítimas na casa da dezena de milhares (40.0000). Já no Brasil, que viveu uma ditadura na qual ilusoriamente havia a "eleição" de presidentes, reconhece-se a morte de apenas 500 pessoas - o que chega a ser ridículo. Milhares de desaparecidos, mar agitado por cadáveres despejados de helicóptero e o aparecimento de crânios, esqueletos e quetais parecem sequer envergonhar quem reafirma esse número infame. Mas, mesmo que 5 centenas fosse a absoluta verdade, mais infame ainda ver que muitas pessoas tratam essa diferença nos números como subterfúgio para dizer que a ditadura no Brasil foi "suave" ou, melhor, nas palavras de um odioso dito jornalista (bancário é quem trabalha em banco, banqueiro é dono; jornalista é quem noticia num jornal; e dono de jornal, o que é?), "branda".
Entretanto, nada tem a ver com isso Isabel Allende. Então, corajosamente, dez anos depois do golpe, ela publica "De amor e de sombras" (De amor y de sombra), simples e tocante livro que aborda toda a incompreensão, ignorância e crueldade daqueles que integraram e compuseram defesa com a ditadura militar do seu país; aborda a ignorância e desumanidade que, em sua ficção tão próxima do real, levou ao assassinato de uma adolescente que convulsionava diariamente e a quem se atribuía pequenos milagres; aborda a ilusão de quem vivia placidamente dentro dos muros do castelo do aburguesamento, crendo na existência calma, pacífica, profícua e feliz de um país verdadeiramente miserável e cruel; aborda a dor e a dificuldade, a insistência e o coração límpido de quem, com suas inócuas ferramentas, continuava erguido e lutando contra um regime de exceção; aborda como a paixão é capaz de nos arrastar à verdade, por mais cruel e indesejável que ela seja, e aborda também como o contato com a realidade nos transforma; aborda a indiferença dos líderes do regime, que viam a verdade consequente da desumanidade de seus atos escancarar-se para o mundo enquanto davam de ombros e continuavam torcendo os pescoços que lhes desagradavam.
Como não podia ser diferente à altura em que o livro foi escrito, a obra termina com o risco de morte, a fuga e o abandono da pátria das duas personagens que desnudaram uma única singela verdade do regime; mas ambos com um sopro de esperança, com aquela chamada de ar ao pulmão que ergue a fronte e faz os olhos brilhar na esperança de um dia voltar para uma pátria melhor.

Ótima leitura para quem suporta os pequenos nós na garganta.

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